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Rocha de Sousa

UMA FORMA DE COMBATER

Os antigos meios usados por pintores e escultores na produção das suas obras de arte são ainda, em muitos casos, um acervo usável, apesar das novas tecnologias, dos novos materiais, das actuais metamorfoses de género e de convívio público. Ao tempo e avanço cultural na dinâmica das grandes cidades ou no importante quadro das referências culturais juntaram-se processos artísticos inteiramente novos, como a fotografia e o cinema. Tudo isso, na conta ao mesmo tempo industrialmente transformadora, quer na massificação do trabalho como na decisiva circulação do capital, houve que abrir espaços conceptuais relativos às artes, cada vez mais atravessadas pela mudança das formas no campo do registo e da significação. Isso contribuiu, em agitação revolucionária, para um novo olhar sobre os achados na ordem estética, permitindo reformular o quadro da percepção visual. Olhar e ver foram assim atravessados por grandes quantidades de novos estímulos, operando profundamente o desmembramento de antigos cânones e fomentando outras qualidades no espaço da vida humana.

 

A um longo caminho civilizacional nos séculos XIX e XX, a par de novas energias e máquinas que aceleravam as linhas de produção, houve outros entendimentos no traço de design ou da comunicação funcional. As populações foram mobilizadas de forma mais decisiva. Houve contudo importantes crises na arrumação dos territórios e dos novos meios de competição civilizacional, mudaram espólios, inventaram o inesperado, alargaram a especulação das artes, todas elas, bem perto de descobertas que permitiram registos credíveis dos espaços, das actividades criadoras, dos sonhos e aventuras. O registo das coisas através da fotografia alargou a consciência das pessoas para a natureza do mundo real. Por outro lado, as réplicas do cinema mudo e depois sonoro, alcançando a própria cor. Estas invenções tiveram o mérito de apontar para um amanhã diferente — pouco mais do que ilusão, contudo, porque antes disso a humanidade deixou-se cercar por novas assimetrias e conflitos armados, até hoje, com a tensão absurda entre os apetrechos salvadores e as crises tão intensas quanto absurdas.

 

Vim aqui para reaver o mundo da arte do escultor António Júlio, nascido em Chaves, 1951, em certa medida num tempo de transição, já depois da última Grande Guerra, e no proscénio das vias de modernidade nascidas com o século XX. Este artista desenvolveu a sua vontade criadora na frequência da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (licenciatura em Artes Plásticas, Escultura) numa época em que Portugal vivia transformações decisivas a propósito da descolonização e regime de abertura a uma perspectiva democrática, ainda incipiente mas avassaladora, em  diversos  sentidos,  incluindo  a  aventura   do  espírito criador, nos estudos artísticos, e entretanto nas infraestruturas  a diversos  níveis, rodovias, arquitectura e cidades, na adaptação ao movimento de massas entre a vasta diversidade dos polos turísticos, aqui e no mundo.

 

António Júlio, embora colaborador de Nadir Afonso, e assim desvendando parte das novas proposições pictóricas, uma geometria paisagística do espaço urbano, a superação de muitos limites. Júlio aproximou-se sobretudo de uma escultura telúrica, das peças quase intimistas e também as vocacionadas para a grande escala, tratando a pedra e alguns metais, como que soprando para suportes duros o pó das matérias anteriores, não pigmentos guardados em tubos ou feitos como nos ateliers da Renascença. E contudo este artista inventou espaços planos onde uma pintura de névoas delicadas exprimia paisagens sem adereços. As matérias do pó arrancado aos blocos de pedra, trabalhadas por uma força bem antiga, manual e sintética, serviram o autor na invenção de muros, praias brancas, céus onde as formações vaporosas, deslizando numa horizontal carregada de memórias entre cavalgadas de antigos reinos, deixando atrás de si fundos cinza, matéria de um outro pó, nem azul nem aquecido, antes de uma cor neutra, sem nuances. Paisagens muito persuasivas, essas, semi-desfeitas para a objectiva ocular, cegueira branca que repartia discretamente por cinzentos pálidos e brancos desertos sulcos aqui e além, porventura em razão de ventos meio circulares ou turbulências mais devidas à Natureza do que a actos humanos. Estas paisagens e lugares, em última análise, emergem do nada para lugares interstelares, frios, por vezes contaminados por alguma sombra de fortaleza abandonada. Não há gente, o homem está por vir ou já se desprendeu da materialidade ainda luminosa mas já morta de um planeta que poderá um dia ser o nosso, tumularmente.

 

Não estou a inverter a ordem dos achamentos plásticos de António Júlio: se o pó diverso vem das pedras que ele descasca e raspa ou risca, deixando-as exprimir parte do corpo humano, talvez em representações da incerteza mutante, porque razão não se desvenda primeiro a escultura em si e só depois o espaço de clarezas e estranhos sinais de eventuais gestos da vida?

 

Não sei, não fiz nem faço qualquer organograma para me lembrar as belas imagens de uma obra que não é feita para ser classificada com períodos mais ou menos intencionais (ou até contraditórios): os nossos olhares perante obras plásticas podem ser condicionados no tempo e no espaço em função da «ciência» dos curadores. Há maneiras de refazer tudo isso, circulando no espaço de uma exposição ou viajando, caso a caso, por grupos de obras, anatomias ainda não prontas, enlaçadas umas na outras, como um arranque do desejo, o que exprime o homem antes das poeiras que ele aplica ao depois das casas dentro e fora de si mesmo.

 

Um quadro na parede, entre brancos e cinzas como a captação em plongé de qualquer chão carregado de cinzas e neve — isso pode anteceder   conceptualmente os batimentos do ferro na pedra, as brocas furando, as raspadeiras raspando. Daí aqueles blocos arredondados e lineares, hirtos, que parecem entrar em dois grandes lábios de contraste, vagos sinais de ligamentos no interior dessa eventual metáfora. (cito a peça publicada e exposta na Galeria Municipal Gymnásio * Lisboa 2001, com Justino Alves).

 

Voltemos ao material do pó: Alexandre Castanheira pergunta, num texto sobre António Júlio: «A pedra sofre? Aquele desfazer do mármore, aquele pó que se acumula aos pés do artista, dói-lhe. E ele agarra o pó e lança-o sobre a madeira, pedindo-lhe que transmita um novo rosto à vida. E o pó cria, num retorno ao inerte cheiro da vida». Se este método anuncia, como já vimos, o evento da pintura, noutras circunstâncias, Júlio derrama o seu material, com meios apropriados, em jeito de circularidades mais cheias no vértice da curva, desenhando arquitecturas híbridas, oferta gráfica do outro lado desta técnica, desenhos de construção-desconstrução, paradigmas de uma aventura que começou no fundo dos tempos e com matérias do mundo vegetal, orgânico, ou favorecido na base por pedras em sucessivos contornos da massa. Trata-se de um combate contra o vazio, mas um combate em velocidades mansas, consoante as exigências dos materiais e da sua pulverização, do seu uso em termos de linha ou de mancha estreita. É por isso que António Júlio escreveu para uma das suas exposições (Galeria Ruben Cunha, Lisboa, em 1999): «Desenhar e desenvolver uma estrutura, encadeando formas/volumes no espaço, evoluindo nessa estrutura que se vai definindo, obriga a intervir intuitivamente com ponderação. As formas/volumes que, ora estruturamos a partir de relações naturais, ora desestruturamos no sentido de as ordenar, surgem-nos como elementos independentes e num todo que alcança sentido harmonioso. Só com muito trabalho, trabalho perseverante, permanente, constante, libertando o acessório e instaurando a essência, a peça que fazemos pode evoluir no espaço.»

 

António Júlio, embora tenha desenvolvido uma obra multidisciplinar, passando pela escultura, desenho, pintura, cerâmica, géneros complementares, teve um percurso fulgurante, no entendimento do escultor João Duarte: «importa salientar e sublinhar, hoje, no conjunto da obra de António júlio, uma precisa exigência plástica em termos de originalidade, de modernidade, mas sobretudo no que implica de profundo saber oficinal e justa articulação das suas particulares vitórias técnicas.» Neste momento, será oportuno voltar o nosso olhar para o decisivo mundo da escultura, neste autor que não sentia atração pelo registo do real, cópia do ver, e antes enfrentava a grande paisagem lítica, num fervor de abraçar a Natureza por outro caminho, nas derivas que o levavam ao combate permanente com a pedra, aqui denunciada no seu sentido lato. Entre a dureza, a cor, a porosidade e os modos de refazer a forma do mero arrancamento de partes rochosas da terra, António Júlio viajava ao fundo de si mesmo e combatia cada lugar, restos emergentes do solo, como se os fios orientadores das pedreiras o desafiassem a rachar parte desse mundo, antes de se deslocar a outros locais, como Sísifo, transportando um significativo espólio de matérias esplendorosas.

 

Logo a cada início, o artista partia de um diálogo constante com a sua interioridade e perante as partes do mundo para as quais sonhava cortes, raspagens, polimentos, tudo em função de uma soma posterior feita à volta do conceito de equilíbrio. Quer nas suas obras de oficina, quer nas peças erguidas no espaço público (monumentos e diversos sentidos, vitórias e sonhos), Júlio tinha de ajustar o entendimento dos equilíbrios, a percepção das leis da gravidade entre os diferentes blocos (ou partes) das somas finais de cada peça resolvida, suspensa ou pesada no chão, plenitude conclusiva de um longo combate entre o poeta das formas e as matérias antes de formadas para a coerência do seu encadeado e do inapagável significado ali fixado para sempre.

 

O mero alinhamento destas palavras, que são formas de ver o trajecto feito pelo artista entre as origens, os combates, o afeiçoamento — e o modo congregante da presença no local da paisagem ou da comunidade. Para esse encontro de encontros, o escultor António Júlio dispunha de um modo de ser e de uma especial percepção das formas (antes da sua relação volume/espaço) este artista regulava o envolvimento das coisas na sua integrada imagem com os mais diversos cercos do visível.

 

A dificuldade de transportar a escala média para o exterior, ou seja, para a grande escala, obrigou desde logo o artista a procurar um terceiro material que lhe permitisse içar o que trabalhava à altura do seu olhar e das suas mãos, com as ferramentas com que trabalhava. A sua busca levou-o à escolha do níquel, um metal que funciona bem a temperaturas de escala média, reúne, em condições próprias, modos de fechar partes e circuitos apoiando-se no chão a prumo ou dessa maneira em dobras horizontais que dilatam a estabilidade mecânica e plástica dos conteúdos da obra.

 

São exemplos desta procura e deste modo de formar em grande escala, peças de arte púbica como; «Família», mármore polícromo e aço inox; «Tres-malhado», mármore polícromo e aço inox. Vale a pena citar o autor, a propósito do seu entendimento da vida, em particular das formas a que dava nomes e sentido perene:

 

«Constituímos um todo, uno e harmonioso, de tal modo que, acrescentando ou retirando um dos seus elementos, ficará imediatamente mutilado. As formas que lhe dão corpo terão de ser imutáveis».

 

A arte em geral procura eternizar os símbolos do seu nascimento e conclusão. A esperança de António Júlio era a esperança das pessoas que não abrem espaço à consolidação das incertezas. Esculturas constituídas por planos mármore polícromo e aço (INTIMIDADES, por exemplo) erguem aos nossos olhos uma síntese da anatomia humana e tudo nela nos mobiliza para a estabilidade concreta, inamovível. Assim parece poder resistir a milénios de silêncio. Assim pode parecer com a figura trabalhada em calcário de molianos, num apoio entre partes, esclarecida no GRITO que a intitula. Não é uma imitação do homem mas a intencionalidade dos títulos relacionada com uma intrínseca agitação das partes. Aquilo que, na arte deste escultor, nos parece perene pela solidez cerzida dos planos e configuração da estabilidade, abre-se com o tempo a blocos em parte aéreos, alienigenos, subtilmente ligados no espaço por metal adequado (MÁSCARAS, 1988; GUARDIÃO, conjugado em mármore polícromo e aço inox; ou o MONUMENTO À SOLIDARIEDADE, todo ele erguido em altura, convivendo com o céu, desde pedras facetadas e sem nome ao afeiçoamento da pedra à anatomia que define o homem subindo na árvore dos seus sonhos (1977, Laranjeiro, Rua Professor Luis Gomes). Assim, com efeito se processa uma boa parte da obra de António Júlio, desde peças como A FAMÍLIA, TREES-MALHADO, de 2001, VIPERINA, (mármore, basalto e aço inox, 2001 ou esse ser ANDRÓGENO, sobretudo em mármore, calcário e uma engenhosa teia ascendente em prumos e anéis de aço inox. Esta metodologia, que segura os elementos da composição e os simula ao mesmo tempo feitos intrinsecamente de blocos (com frequência alongados) e artérias de uma elegância não apenas de suporte mas nascidas do mesmo chão e da mesma raiz, como uma estatuária dos mais diversos símbolos ligados aos seres humanos e não como representação dos césares meio deuses ou de gente enlaçada no jeito gregário das famílias e do espanto solidário.

 

As peças de interior (digamos assim), feitas também em pedra, fracturas deliberadas que se olham de frente, ou não olham, apenas respiram a sua atitude e se deixam orlar (entre partes ou partes e suporte inferior) por segmentos rectos ou curvos de um mesmo metal e secção. Isso é muito bem usado em peças como CABEÇA e ACTOR, entre muitos outros casos. Arte como forma de combate, modo de ser, entre a expressão endurecida ou os modos de significar na postura, no polimento, nos resíduos côncavos donde brotou pó, a natureza daqueles pigmentos que formaram e informaram pinturas etéreas.

 

Estas características atrás elencadas emigram de obra em obra, breves ou monumentalizadas, falam de combates e viagens pelo espaço do imaginário ao intimismo das criaturas. Podemos falar de D. Quixote, dos símbolos fálicos, das raízes no monumento arbóreo cujas máscaras, longe, ao alto, gritam em silêncio o sono da fecundidade ao crescimento e das lutas contra as máquinas.

 

Assim, numa abordagem singela à obra de António Júlio, entre as ciladas do olhar e do ver, mais por documentos do que por visitas durante o seu tempo de vida, combate em nome da harmonia e da pacificação das paisagens, linhas de pó, invenção de meios imprevistos, a pedra e o metal, os actos da vida, o desejo do outro e a armadura dos símbolos, aqui saudamos quem revisita a memória do artista e da sua obra. Ele pisou a terra e fez renascer as pedras, sem ter que copiar o mundo e a agitação das metrópoles. Ele concedia ao quotidiano um tempo de pensar, de reflectir, abrindo em tais pausas um espaço pronto a receber modos de pensar ou os caminhos para saudar a vida através das suas estranhas morfologias onde o ser humano se refazia no ser e na significação histórica. Filho muito especial da vanguarda, não era aos sintomas de obscuras prioridades que oferecia cada avanço e as melhores inovações que lhe aconteciam, essas sim, combate pelo espírito das coisas raras, património de antigas conquistas do espírito entre as faces por vezes equívocas das civilizações.

© Luis Espada 2021

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