top of page
Nuno Pinheiro.JPG

Nuno Pinheiro

António Júlio, o percurso de uma mala.

 

Um telefonema lembra-me o atraso neste texto. A procura de inspiração leva-me a empilhar catálogos da Imargem, procurar palavras, procurar imagens. Mais relembrar, por enquanto. Uma segunda etapa levar-me-á ao que não conheço. Como conhecemos mal quem achamos conhecer. O António Júlio era um homem uma robustez transmontana e senhor de uma enorme delicadeza e sentido de humor. As suas esculturas de aço e mármore podem ser vistas como uma metáfora do próprio. Forte, robusto, mas ao mesmo tempo delicado e polido. Aço e mármore, polido, táctil, de uma sensualidade que apetece acariciar, assim são as suas obras mais conhecidas.

Passo por alguns títulos: Solidariedade, Fraternidade, e porque não Tresmalhado. Títulos das suas obras que também o descrevem. Um artista solidário e fraterno, um homem solidário e fraterno. Empenhado, militante, mas sempre aberto e tolerante. Soube assumir responsabilidades autárquicas na terra de sua adopção. Tresmalhado também porque sempre independente, sem caber no rebanho e no redil.

A pilha de catálogos da Imargem vai-se dividindo em duas. A das exposições em que participou, achava que eram todas, ou quase, e as em que esteve ausente. A pilha das segundas aumenta. Porquê tantas ausências, espero resolver a questão. Por agora só imagino que por ser um trabalho pesado, complexo não seria fácil apresentar trabalhos novos todos os anos. Pedra, metal, também madeira, mas será mesmo essa a razão? As esculturas eram apenas uma parte da sua obra, mas raramente mostrava outros trabalhos.

Sigo para o Laranjeiro em busca da "Solidariedade" e da "Fraternidade", para rever, porque já conhecia. Volto para fotografar algumas peças e a Elsa mostra-me a mala. Fico fascinado pelo objecto, percebo a história. A mala é um símbolo, um símbolo das andanças. Imagino o António Júlio em criança em Chaves onde ainda havia lobos que se distinguiam dos cães pelos olhos amarelos.

Das terras pedregosas de Trás-os-Montes terá nascido o fascínio pela pedra, um dos seus materiais de eleição. Não seria a escultura uma resposta ao estímulo de um local tão tridimensional. Contam-me que as coisas que gostava de trazer da terra não eram os belos produtos agrícolas, mas antes as pedras que ia esculpir. E encontramos essas pedras na base de algumas das suas obras, empilhadas, alinhadas. Muito do seu trabalho fez-se aproveitando o que a natureza dá. Uma árvore na Piedade transforma-se numa escultura, material efémero, infelizmente. Já não existe.

A mala foi um fio que o levou à tropa, à Guiné. A grande rasteira passada à sua geração. África era perder anos de vida. Alguns perderam a vida, outros voltaram com marcas físicas e psicológicas (impossível não as sofrer). A mala também me conduz pela sua vida e obra.

A mala é a tristeza de partir, do fim da infância mas ficaram sempre a gaita e o pião. Afinal o artista não é sempre uma criança? A mala também o ponto de chegada, ao Concelho de Almada, ao Laranjeiro onde viveu, onde trabalhou, onde foi autarca. A gaita é a música e o pião a ligação à brincadeira e à alegria, à infância. Não é o artista uma eterna criança?

Uma grande dimensão comunitária está patente no seu trabalho na Igreja de Miratejo. Um processo quase de quase auto construção, para o qual fez o altar, a pia baptismal entre outras peças. Tratava-se de dar um sentido estético a um edifício cujas limitações a nível de construção não permitiam uma obra de arquitectura elaborada. É quase um encontro entre a arte-sacra e a arte-povera de quem não tinha experiência em arte sacra. A religião é humanizada, Cristo é um menino que tem um pião, torna-se num símbolo de todos os meninos. O trabalho na Igreja permite-lhe trabalhar para um público alargado, em espaços e volumes bastante grandes. Numa concepção democrática de arte, achava isso mais importante do que produzir para a fruição de um indivíduo ou um pequeno grupo.

Faltam-me as etiquetas, talvez não sejam muito necessárias. Há uma dimensão simbólica clara, figuras humanas que não são literais, são formas, volumes, mas estão lá. E é claro que estão. A leitura não é imediata, mas também não são herméticas e opacas. A contemporaneidade é dada pela forma do uso de materiais como a pedra. Pedra que é lascada na base representando a terra e a natureza e polida nas figuras humanas com os seus valores de civilização. Os valores ecológicos estão implícitos, um aspecto importante da arte contemporânea. Vejo na dicotomia pedra bruta das bases / pedra e o metal polido uma oposição entre valores naturais e valores humanos. Porém os valores dominantes são os humanos. Os naturais estão na sua raiz.

Apesar de estáticas algumas das suas esculturas estão carregadas de equilíbrios cinéticos com uma sensação de dinamismo e velocidade e ritmo. Apesar do metal e da pedra, há também uma sensação de leveza, sem que se aparente fragilidade. A utilização de pequenos blocos ligados por tubos complementa esta ideia. O espaço vazio que funciona como o silêncio na música. Voltamos à gaita e à ideia de que a arte não tem fronteiras, nem barreiras.

Falar num artista militante leva-nos a ressonâncias do neo-realismo de gerações anteriores e, na sua geração para um figurativismo algo passado, mensagens directas e pouco subtis. No caso de António Júlio prefiro falar em artista empenhado uma vez que a arte reflecte o seu empenho político e por vezes de forma muito direta, mas isso faz-se de forma subtil, não figurativa, é mais sussurrado que gritado.

Alguns dos seus trabalhos foram numa linguagem que pode ser considerada menor, a medalhística. Mas esta apresenta um outro tipo de desafio. O objecto deve estar expresso e identificado. Geralmente há palavras datas, logotipos, elementos simbólicos, um grande desafio em material e dimensões pré estabelecidas.

E voltamos ao sofrimento. O sofrimento de um percurso, do percurso da mala. O sofrimento da criação, com materiais tão difíceis com a pedra. Mas também é a pedra que sofre, ao ser lascada, polida, o metal a ser dobrado, polido. E do sofrimento nasce a arte. Do sofrimento nasce a beleza. Temos sido bafejados com a beleza do trabalho do António Júlio, no entanto só conhecemos a ponta do véu, aquilo que ele, sempre reservado e discreto, nos quis mostrar.

Abro e fecho a mala várias vezes. Os fechos desta humilde mala com mais de meio século estão perros. Como se fosse a Caixa de Pandora, vi a vida e a obra do António Júlio, apenas uma pontinha do véu, talvez. Arrumo as medalhas nos seus estojos. Termino a pequena jornada pelo trabalho de um amigo e colega que admirava. Espero por outras jornadas nesta tentativa de manter vivo na memória um amigo e artista, o António Júlio. Vejo-o de sorriso aberto.

© Luis Espada 2021

bottom of page