
Padre Casimiro
“Igreja de Miratejo: António Júlio e as cores da arte religiosa”
A construção de igrejas tem sido uma dinâmica constante na Diocese de Setúbal. O facto deve-se, em parte, por ser uma Diocese nova, criada no pós II Concilio do Vaticano, que deseja chegar às periferias. Por outro lado a construção da Ponte sobre o Tejo trouxe novas massas populacionais fazendo com que a zona ribeirinha, na foz do Tejo, ganhasse nova vida e ainda o fim das colonias ultramarinas que provocaram o regresso de muito colonos e de muitos emigrantes.
As velhas paróquias, das regiões de Almada e Seixal, veem as suas zonas rurais urbanizadas com novas gentes que é preciso acolher e incluir nas comunidades locais. Contudo em muitos lugares não bastou acolher, foi necessário criar novas comunidades e construir templos que respondessem à necessidade de evangelização desses lugares. É assim que a Paróquia de Corroios promove o crescimento das comunidades de Vale de Milhaços e Miratejo e se constroem as suas igrejas.
Cabe-nos lançar um olhar sobre a igreja de Miratejo.
O templo passou por diversas vicissitudes, as verbas eram poucas para o edificar e teve de ser reconstruído depois de alguns danos. Os planos iniciais tiveram de ser adaptados a estas contingências financeiras, bem como às mudanças sociais e paroquiais.
O edifício apresenta-se de linhas simples e austeras, próprias do pensamento da época. Desprovido de elementos arquitectónicos de relevo, logo se percebe a necessidade de dar sentido estético ao espaço e ao mesmo tempo definir focos litúrgicos.
O escultor António Júlio é convidado para a tarefa. Não possui credenciais que atestem o seu trabalho em campo religioso e o facto de ser homem da terra talvez não servisse de justificação bastante mas a proximidade do autor à comunidade e a docilidade ao território da fé, ajudam a opção.
Encarrega-se então o escultor da elaboração de algumas peças necessárias à liturgia e do ornato do templo.
Denota-se no trabalho realizado as contingências financeiras evidentes no ambão e quase-negligenciadas no altar e Pia Baptismal. As três peças são integradas num espaçoso presbitério elevado com degraus e dispostas uniformemente. O desenho de chão ajuda a leitura conjugada com a decoração em pedra dos elementos descritos. Se o aspecto monetário continha, a criatividade do autor ultrapassava a dificuldade fazendo com que esta não impedisse que os materiais pouco diversificados gerassem uma obra de traço delicado e profundamente rezado.
Os espaços onde se dispõem o ambão e o Baptistério são embelezados com duas peças em pedra com incisões policromadas. Na verdade estes rasgos de cor funcionam como ponte entre o negro da pedra da nave presbitério com a parede-retábulo profusamente colorida. O Painel do lado do ambão representa a Sagrada Família, a quem a igreja foi dedicada, no lado da Pia Baptismal o Baptismo de Jesus. Na cena do Jordão o escultor toma uma linha representativa tradicional em que, João Baptista de pés emersos se eleva acima do Cristo baptizando-O, sobre eles contempla-se o Espirito Santo que toma a forma de uma pomba.
Já na representação da Sagrada Família, António Júlio, foi audaz rompendo as formas tradicionais e misturando elementos pessoais com tradições bíblicas judaicas. As figuras de José e de Maria apresentam-se como velas, cuja luz pretende iluminar o caminho daqueles que querem chegar a Jesus. Por seu lado o menino Jesus curvado joga ao pião. Sabemos como o elemento do pião está ligado à infância do escultor e particularmente à figura paterna. Também em Israel, a pretexto do jogo do pião, o pai ensinava os fundamentos da fé aos seus filhos. Não sabemos se esta tradição judaica esteve subjacente à criação deste painel contudo, na lógica da providência divina a história pessoal e a história bíblica, resultaram num painel que as actualiza.
Em segundo plano, em relação a estes dois painéis, ergue-se a parede do altar-mor que funciona como autêntico retábulo. Uma cruz em pedra lavrada emerge das águas formadas por uma rica composição em pedra de lesins frenéticos, cujas linhas se confundem com o próprio sacrário. O Sacrário é em bronze, de planta quadrada, possui duas portas. Nestas foram gravados motivos aparentemente campestres. Um cordeiro e, o que parece ser, uma trombeta. Também poderíamos descrever este elemento como uma cornucópia de onde jorram águas de vida ou de abundância. Pela riqueza destes mármores e do próprio sacrário, parece-nos que, o escultor não fez concessões nestas peças ao parco poder financeiro. De facto o Sacrário e o mar que o envolve destacam-se, em toda a composição, como se chamassem a atenção para aquilo que é realmente mais importante neste espaço: o Altar da Consagração e o Sacrário da Adoração.
Todas as paredes são forradas a pouca altura de pedra. As figuras geométricas dão dinamismo ao espaço criando uma uniformidade estética em conflito com a aspereza arquitetónica.
A última intervenção que falta referir é o pórtico, com o qual o autor dotou a porta de entrada do templo. A estrutura em pedra negra e rosa segue o modelo clássico com um par de pilares (ou se preferirmos colunas de secção quadrada) de fuste irregular formados por quadrados que se sobrepõe e sustentam um frontão triangular.
Pelo que sabemos, António Júlio, não possui mais nenhum trabalho em espaço religioso. As obras da igreja de Miratejo tornam-se assim, juntamente com o trabalho em colecção particular de caracter intimista, muito particulares no contexto da sua obra. Mais conhecido pela obra em espaço público é de notar e de salientar esta intervenção do autor em espaço sagrado, momento único e quem sabe auge da sua carreira.