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Margarida Alves

Entre a potência e o acto, o corpo encontra-se com a matéria. Uma energia de vida conflui com a outra, inanimada, e é a partir desta relação que o escultor transmuta as formas até ao seu limite físico material. O escopro como prolongamento da mão, a pedra como resistência física, e entre corpo do homem e corpo das pedras delineiam-se múltiplos corpos possíveis.

As esculturas de pedra desvelam-se assim, em António Júlio, como um diálogo material que nos convoca a reflectir sobre a nossa própria materialidade e corporalidade. Num processo que comporta heranças do modernismo, em particular, num sentido de aproximação à escultura abstracta, o referente central assume a forma de resquício, fragmento, confim.

 

É através da pedra que a pele e o corpo se desdobram nas suas múltiplas naturezas policromáticas (granitos, mármores, calcários, basaltos) e as formas começam a expandir-se no espaço. Primeiro, assumem uma natureza de construção em assemblagem, formas contíguas concebidas com vários blocos (como por exemplo no caso da obra Angústia, 1988).

 

Posteriormente, o recurso a estruturas aproximadamente reticulares de tubos de aço e latão, possibilita a construção de um sistema de suporte que comporta uma composição formal profundamente inovadora e um estilo pessoal muito particular. O blocos de pedra são agora elementos flutuantes (como o exemplo da obra Família,1999).

 

O escultor transforma subtilmente o peso em leveza e a escala que constitui as obras estende-se entre a dimensão íntima e pessoal e a escala monumental, como o caso do Monumento à Solidariedade (1997).

A intervenção a favor da leveza traduz-se em múltiplas camadas que transcendem profusamente o formalismo.

 

A obra de António Júlio é condição manifesta de deslocamento da aparente dicotomia forma-conceito para outros modos de relação, como forma-contexto.

 

Por exemplo, o Monumento à Solidariedade é uma escultura pública sem base ou plinto, o que nos dá algumas pistas, não apenas em relação à herança modernista, mas também ao sentido contextual que a obra comporta.

 

As formas estruturam-se numa composição dinâmica ao longo de uma malha reticulada curvilínea. As várias partes de corpos sintetizados funcionam num conjunto global. Contudo, não é possível alocar uma parte a um corpo.

 

O torso, a(s) cabeça(s) sobrepostas, fragmentos policromáticos polidos e rugosos são colocados em diferentes níveis da malha, permitindo-nos inferir que das partes se constitui um todo indissociável, profundamente humano.

Retomando o gesto do escultor, é a partir da relação íntima entre a resistência que se sente e a corporalidade em devir, que nasce a matéria ínfima, o pó de pedra.

 

António Júlio recolhe este desperdício das acções e é a partir das poeiras mais finas que constitui a pintura. Do ponto de vista processual, a matéria residual da escultura consubstancia-se em pintura, por outras palavras, da escultura devém a pintura.

Salienta-se mais uma vez, a subtileza e profundidade conceptual que o trabalho do artista comporta. Na pintura de António Júlio, o referente central desloca-se do corpo para a paisagem, delineando em diversas obras um tempo geológico que se encobre nas profundezas da terra (como o exemplo de Falésia, 2001). As pinturas revelam encostas, escarpas, construções inacabadas, condições de ruína, mares enevoados, brumosos.

É neste sentido que o artista convoca o processo de meteorização latente entre a escultura e a pintura. Do corpo do escultor, transmutam-se as pedras em múltiplos corpos nascentes. Da poalha destes corpos, constitui-se a matéria da pintura. Destas pinturas-paisagens, compõe-se a corporalidade em devir.

António Júlio, escultor. Vertical e horizontal, profundo. Um traço que tudo iguala na natureza mãe. Energia, cor e forma, substrato de matéria, pó de pedra, minério e vida.

© Luis Espada 2021

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