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Lucília Castro Figueira

 “Porque quem não sabe arte, não na estima.”

Camões, Os Lusíadas, Canto V, Est. 97

 

 

Há pessoas de quem nunca nos despedimos. Porque não queremos – ou porque seria um sacrilégio fazê-lo. E, aliás, as obras valerosas mantêm-nas vivas entre nós.

A grandiosidade humana, a sageza e a visão alargada, a generosidade com que tratava quem considerava seu amigo, tudo isto é algo que não podemos esquecer no António Júlio.

Cruzei o meu percurso com o do António no abraçar de uma profissão – a de professores, na Escola Soeiro Pereira Gomes (Cooperativa Mista de Ensino do Laranjeiro), em meados da década de ’80, era eu uma jovem de 24 anos. Desde logo intui que estava perante um caso sério ao nível das artes. A entrega ao trabalho a desenvolver com os alunos – sempre a defesa de uma Educação para todos! – e, concomitantemente, aos projectos individuais que diversas vezes me confidenciou libertarem-no das amarras e do peso burocrático em que as escolas se estavam a tornar, retirando espaço à imaginação e à criatividade de alunos e de professores, essa entrega ao labor suado e árduo foi para mim um exemplo. Ou melhor, foi o exemplo e a confirmação de que tudo o que vale a pena na vida exige esforço, sacrifício, rigor, verticalidade, alegria e deslumbre.

É um privilégio ter o traço do António Júlio a animar e a dar vida ao meu escritório, com “Momento lúdico” e “Vigor de Abril”, bem como a provocar regozijo num outro espaço do meu lar com a presença da figura feminina voluptuosamente traçada e tão penetrante, tão forte, tão vincada. Este último trabalho foi presente do meu 26º aniversário e traz consigo uma dedicatória muito carinhosa.

Por falar em carinho, não posso esquecer o facto de ter ido com a sua companheira, a minha amiga Elsinha, visitar-me à Maternidade, nos finais de Outubro de 1994, quando tive o meu filho. Não esqueço o brilhar dos seus olhos e o sorriso, talvez por me perceber feliz, enquanto conversávamos reunidos à volta da criança que acabava de chegar – para mim, momento tão mágico quanto assustador pela nova responsabilidade.

O mesmo carinho com que comentava os meus desabafos sempre que a vida se me apresentava mais ou menos importunadora, usando palavras certeiras, embora bem-dispostas.

E o mesmo carinho com que saudava os meus pais quando os encontrava na sua voltinha de reformados, aproveitando, os três, para lançar uns salpicos de aspereza contra aqueles que nos iam governando. Não nos esqueçamos de que a luta política por uma terra mais justa foi, igualmente, algo por que o António se pautou incondicionalmente. Daí a sua presença em encontros vários de cariz político, como por exemplo na “Voz do Operário”, onde se homenageiam, com frequência, figuras emblemáticas que lutaram heroicamente contra o regime de Salazar.

Nunca me esquecerei do gesto afectuoso e de boa vontade quando visitou a minha escola, a Escola Romeu Correia, no Feijó, para aí falar aos alunos sobre a sua pintura, a sua escultura, deixando-lhes a porta aberta para o questionarem sobre o que bem entendessem, ao mesmo tempo que sonhavam com formas, cores, movimento, luminosidade, a vida transfigurada, redescoberta. Também aí a generosidade da dádiva está assinalada com um quadro numa das paredes da Biblioteca.

Tinha muita graça quando contava que, um dia, viajando no seu Mini de estimação, de regresso de Trás-os-Montes, para fazer caber umas pedras que se tinham posto ali a “jeito”, aventou com uma saca de batatas a meio do percurso, preferindo aquela matéria em bruto que lhe iria, naturalmente, alimentar a alma. Era o apelo da pedra a que nunca ficava indiferente; era a pedra que iria ser tocada pelas suas mãos, depois de clara e escrupulosamente pensada.

A vida, por vezes, leva-me a meditações inevitáveis – formas de fuga aos desajustes, aos desconfortos, aos dissabores – e confesso que o soberbo trabalho de escultura do António Júlio presente na Paróquia da Sagrada Família (Igreja de Miratejo) vem baloiçar à minha frente, facultando-me momentos de pacificação e de lucidez. É uma contemplação mental que vivencio e que me apazigua.

Sempre acalentamos a esperança de que os nossos amigos, quando adoecem com maleitas que previsivelmente lhes ceifarão a vida, quando ainda há tanto para dar e para receber, sejam salvos pela ciência que tanto tem avançado. Mas não, desta vez, não foi possível, e o amigo António partiu num dia de Dezembro de 2015. Mês frio – como frio é tudo o que resta quando os amigos se retiram.

Contudo, o tempo vai passando, a dor vai-se domando, e cada um de nós, com finura e delicadeza, mantém no seu baú de memórias as coisas boas que nos ligam a quem parte. Em nome dessas memórias, a minha gratidão ao universo por um dia ter tido a oportunidade de ser amiga do homem, do artista, do cidadão António Júlio.

 

Lucília Castro Figueira

© Luis Espada 2021

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