
Jorge Rato
Sei de três vertentes de intervenção pública do António Júlio: docente, artista plástico e autarca. Conhecemo-nos no âmbito da primeira, mais precisamente na então Escola Secundária Nº1 do Laranjeiro, hoje em dia chamada Escola ES23 Prof. Ruy Luís Gomes.
Sei algumas coisas sobre o António Júlio artista plástico; para além da vida da escola, matéria que era o campo de conversas dominante às vezes sobrava tempo para falarmos de como a arte nos entrava na vida. Lembro-me de conversas sobre Stuart Carvalhais e Carlos Botelho que, de modo tão particular, nos deixaram registos de gentes e recantos de Lisboa.
Recordo-me também de falarmos sobre o movimento Bauhaus e a sua influência em tantos artefactos da nossa vida quotidiana presente. Se a conversa sobre a escola se esgotava, entrava quase sempre a arte. Na sala de professores também falávamos do sindicato e da política nacional; mas nada sei sobre a vida de autarca do António Júlio.
Como já disse, conhecemo-nos na escola, corria o ano lectivo 1980/81. Já lá vão quase 38 anos, era o meu quinto ano de docência. Tinha feito o estágio pedagógico no ano lectivo anterior em Lisboa na Escola Marquês de Pombal. Os meus colegas de grupo disciplinar elegeram-me delegado de grupo de Educação Física, tendo assento no Conselho Pedagógico. O António Júlio também estava nesse órgão.
O Conselho Pedagógico, em articulação com o Conselho Directivo amassava o pão da serventia pedagógica. Foram tempos de pioneirismo; o 25 de Abril tinha só meia dúzia de anos.
O sistema de educação estava em crescimento algo caótico. Para abranger em curto espaço de tempo todas as crianças e jovens e não apenas alguns, como no tempo da outra senhora, talvez não pudesse ter sido de outro modo. Nessas andanças, os docentes, essa empenhada charanga pedagógica, ia-lhe conferindo a coerência possível, tentativamente adequada aos anseios dos alunos e expectativas das famílias.
A nossa geração de docência ajudou a construir no terreno o sistema educativo do Portugal democrático e ainda estão por escrever as páginas de elogio que merece. Fizemos parte desse processo, foi um tempo intenso no qual se forjaram grandes amizades. Na Escola Secundária Nº1 do Laranjeiro foi bonito. O António Júlio foi um dos implicados.
Tinha um carácter forte, generoso. Quando era amigo das pessoas, era mesmo. Em meu ver, o António Júlio não era alguém que desistisse facilmente da amizade das pessoas. Era obstinado, significando isto que, uma vez ganho para uma ideia, ou convencido da necessidade de algo ser concretizado, tudo fazia para que a coisa fosse para a frente. Aplicava-se ele e tentava implicar quem pensava poder interessar-se pela matéria em questão. Era um homem de fazer. Palavra dada, palavra a cumprir.
Interessava-se pelas pessoas, sem qualquer réstia de calculismo. Colegas e alunos. Quanto aos colegas, extrapolo tão só a partir do modo adequado em que me dirigia a palavra, indagando se tudo ia bem, quando lia no meu semblante ou postura qualquer sinal de preocupação. Era sensível e certeiro nessa matéria.
Quanto aos alunos, de modo semelhante, sabia trazer a terreiro informações pertinentes sobre o seu modo de sentir, alegrias, contingências e também os seus interesses. Era uma coisa feita sem alarde, dir-se-ia natural, como pude constatar nos inúmeros conselhos de turma em que estivemos juntos.
O António Júlio e eu tivemos sempre um bom relacionamento. Mergulhámos com gosto na correnteza transformadora que a queda da ditadura abrira em todos os campos da sociedade. Havia nesses tempos um entendimento bastante consensual do que havia a fazer na escola, e havia de facto tanta coisa para fazer com e dar aos alunos. Esse fazer era eivado por uma espécie de intuição, pautada por querer uma coisa mais decente do que a escola a que tínhamos tido direito durante o salazarismo e o marcelismo. E não nos faltava humor e capacidade de nos pormos em questão. Chafurdámos bem na realidade desses tempos bons.
Era um homem de força, por onde passava deixava a sua marca. Tenho por certo que gostava da vida e da natureza, mas viva!
Algures nos anos oitenta do século passado, reparei que, no Jardim da Cova da Piedade, uma árvore que tinha secado, estava a ser intervencionada com carinho por um ou dois senhores de idade. A casca que ainda restava no tronco e ramos foi removida a preceito. A árvore seca, que ali crescera e morrera, levou uma poda moderada para que restassem bastantes ramos dos menos quebradiços. Foi envernizada a preceito. Ali estava brilhante, uma estátua muito colada ao real do que uma verdadeira árvore é, mas morta. Poucas semanas depois, no mesmo local e a pouco mais de meia dúzia de metros daquela autêntica natureza morta tridimensional, ali estava outra árvore intervencionada, mas nada convencional, uma verdadeira interpelação. No mesmo canteiro do jardim, por assim dizer a fazer o pino, com os ramos espetados impiedosamente no chão, as raízes a escoicear para os céus, talvez tentando ver-se livres de uns cubos verdes e vermelhos (as cores da bandeira nacional) que se viam aqui e ali em volta de algumas das raízes, ali estava uma intervenção artística inequívoca, que fazia cócegas à mioleira. Vim a saber que era da autoria do António Júlio.
Infelizmente já lá não está nenhuma, como pude confirmar há dias. Haverá fotografias? Alguma menção em publicações da Autarquia de Almada ou da Junta de Freguesia da Cova da Piedade?
Mas se aquela obra desapareceu, outras não…No hall de entrada do prédio em que vivia o António Júlio, há uma estátua da sua autoria. Não é qualquer prédio de periferia que tem uma obra de arte a saudar os moradores sempre que saem de casa e quando a ela voltam! Façam o favor de registar e não se esquecem de a incluir no catálogo raisoné do artista!
A obra mais importante em que tive oportunidade de colaborar com o António Júlio foi a educação dos alunos nas turmas que tivemos em conjunto. Mas ocorre-me um trabalho de marketing social incipiente que se passou também no início dos anos oitenta na Escola Secundária Nº1 do Laranjeiro. A escola tinha então os seus pavilhões, instalações desportivas de ar livre com uns balneários simples de apoio, uns ajardinamentos debutantes e uma rede simples a vedar o seu recinto. Mas nada, mesmo nada a identificava enquanto o que era: “Escola Secundária Nº1 do Laranjeiro”.
Nessa altura eu fazia parte do Conselho Directivo e numa das nossas conversas na sala de professores mencionei esse facto ao António Júlio. “Deixa lá isso resolve-se!...” foi o que ele disse. Poucas semanas depois, tendo mobilizado os colegas da área de metais, para a execução da obra e com design seu foi afixado o nome do estabelecimento no local mais visível da estrada: “ESCOLA SECUNDÁRIA Nº1 DO LARANJEIRO”. Este acto de afirmação identitária até teve direito a uma simpática cerimónia de inauguração com presença da comunidade escolar.