
Fátima Rosa
Não. Não joguei ao pião nem saltei à corda ou à macaca com o António Júlio, mas fomos crianças. Sim, aquelas crianças adultas que trazem os sonhos pendurados nas nuvens e vão desenrolando os fios das horas longas. As ruas eram, no entanto, o palco das nossas brincadeiras. Por vezes tropeçávamos, caíamos e levávamos para casa arranhões na alma, não dos brinquedos, mas dos arbustos da vida.
Conheci o António em 1985, quando eu e a Elsa, sua companheira, trilhávamos o caminho da escola para casa. Costumava vê-lo quase todos os dias quando, na hora de lazer se descortinava um café. Era uma criança robusta, de compleição forte, sorriso empinado naquele bigode farfalhudo que lhe escondia o movimento das palavras. O cabelo longo, atado atrás num rabo-de-cavalo que deslizava sobre as costas. E lá passava, após o almoço, sentado ao volante do seu cabriolet branco, para mais um café com aqueles que desembrulhavam uma conversa de circunstância. Acenava mesmo às pedras da calçada, em harmonia com a passagem do tempo e das pessoas. Na sua voz, ainda com réstias de sotaque transmontano, havia o voo dos pássaros e o chilrear das andorinhas. Leve, suave, transpirava alegria e florescia no deserto dos homens. Gostava daquele ar de revolucionário que me transportava para o cheiro dos cravos de Abril.
O que admirava nas suas mãos era o ato de criação. Por vezes, naqueles dias mais entediantes, visitava o ateliê onde a pedra bruta se transformava sem dor. O cigarro colado aos lábios, os pelos do nariz empoeirados, faziam dele o artista no meio do monte Hélicon. “Menina...” era a palavra mais repetida e, como quem quer dar um conselho, sem imposição, discursava numa atitude fraterna. Mas o que mais se destacava em si era aquela atitude propícia à brincadeira e a mais divertida era, sem dúvida, recriar um filme qualquer de Morricone e interpretar um assaltante à boa maneira de um western ou simplesmente ser, por uns instantes, um John Wayne português. É verdade que aquele cowboy me assustava vezes sem fim, mas não poderia nunca deixar que aquele palpitar acelerado do coração ficasse sem retorno. Congeminava o meu plano para a minha vingança.
Um dia, mesmo em sintonia com o plano desenhado, representou-se, na mata da escola, um texto shakespeariano, Sonho de uma noite de Verão. Nada mais apropriado. A noite caía silenciosa e lunar. O António surgia pregado ao chão, mãos nos bolsos e sorriso orgulhoso de saber que a companheira contribuíra para o espectáculo. Embrenhou-se no texto, bebeu cada palavra e também sonhou. Momento perfeito... Como um caçador atrás da sua presa, movimentei-me sorrateiramente, serpenteando por entre a gente. Subitamente, “qual visão de artista”, acerquei-me dele e, no meio do silêncio nocturno, aquele homem saltou e gritou. Estava vingada.
Multiplicaram-se os jogos, os sustos, as brincadeiras. E assim nascera um irmão que despertava inocentemente a infância de todos nós.
Todavia, outras facetas se mostravam. O António Júlio sabia ser sério, simples e directo. Tinha sempre uma palavra amiga nos momentos mais difíceis - «Menina, isto é assim... » e encorajava, incitava e fazia brotar o melhor que cada pessoa tinha dentro de si. Mesmo nos momentos de maior sofrimento, a sua preocupação ia para os outros e esquecia-se de si. A sua generosidade salientava-se a cada momento.
Assim te recordo, na moldura da memória – homem-criança.
Obrigada por teres cruzado a minha vida.