
Luisa Campina
António, uma força da natureza, desprendido de bens, leal companheiro de profissão, de projectos e desabafos. Homem de causas solidárias. Pessoa íntegra, lutadora, resiliente no tempo e na matéria, afagando a pedra e o aço. Abraçando as rochas, umas vezes talhadas, outras expandidas em cinzas e pós de cor. Uma energia irredutível num agregado familiar, mas com eco universal. A sua vida e obra, uma missão de escola, um rosto ímpar, uma unidade de sentido e sentir, todo ele mapeado de afecto e ética, de arte e de paixão.
Falar de ti mais do que já disse, António, é-me particularmente difícil dada a nossa tão grande proximidade, todavia sempre se me afigurou fácil estar contigo ao longo dos trinta e tal anos de vivências de trabalho que ombreámos. Assim, optemos por conversar um pouco naturalmente um com o outro, tu cá, tu lá, como tantas vezes o fizemos. Lembras-te, amigo, do primeiro dia em que nos encontrámos na sala dos professores, quando espontaneamente te pedi ajuda. - Colega António, a minha actividade desenvolve-se a partir de grupos informais: adesão voluntária dos alunos. Podemos trabalhar em conjunto? E a tua resposta, generosa, rápida, imediata, com um olhar directo, firme, brilhante! - Claro que sim. Entremos pela Arte! - E passada a primeira etapa de sensibilização conjunta, dois terços da população escolar já tinha sido dinamizada. Um espanto!
E aquele outro momento que ocorreu numa das muitas exposições anuais que elaborámos, com trabalhos de alunos, em contexto de escola, conjugando arte, princípios e escolhas - António, está quase tudo pronto, mas não ouso avançar para a abertura do evento sem que passes pela sala. Preciso do teu toque de mestria. E tu, puxando ligeiramente expositores, descongestionando aqui e acolá informação, dirigindo as luzes com esta ou aquela incidência, acusando este ou aquele ruído, respondendo ao meu apelo numa postura de humildade. - Sabes uma coisa, amiga? Este aroma de flores silvestres que acabaste de colher tem muito peso. Diz-me mais do que muitas imagens ou textos! É a força da obra viva emergindo da mãe natureza, a matéria pura, condensada e simples. O difícil é tornar as coisas simples!
Que tal, aquela vez em que tive o privilégio de me abrires as portas do teu atelier de escultura onde livremente mergulhavas em resguardo, após as aulas. Um último andar de um prédio com uma varanda aberta, a estrelejar. Pelas paredes, o que havia? Pássaros, António. O chilrear dos muitos passarinhos circundava-nos. E de vez em quando ouvia-se um leve bater de asas. - A obra de arte, amiga, faz-se com um não sei quê de inspiração e muito trabalho. Este é o meu espaço próprio.
Vem-me à memória, António, o último dia em que nos vimos, de visita à tua casa, na presença do meu marido e da tua mulher. Estavas muito enfermo, mas quiseste receber-nos e o teu discurso continuava activo, frontal, combatente: - Ainda espero fazer muitas esculturas! Em curto prazo, uma com cimento, talvez de parceria. Precisa de cálculos. - E ficámo-nos por ali, nessa dimensão temporal um tanto curta. Depois, pouco depois, foi um Novembro de penumbras, um Sol encoberto. Tu lutando pelo calor da vida, a morte tecendo o calendário dos dias. Um rio de lama, um quase fim. Todavia, ia apostar, António, que logo no mês seguinte, pelo Natal, no aconchego do meu lar, não no pó da terra fria onde foste devolvido, olhei para o teu quadro, o “Aglomerado Familiar”, e senti a tua presença, paralela. Uma energia residual brilhava na parede configurando-se numa pedra, ígnea, a soltar-se, destacada do conjunto das formas que traçaste nessa obra, uma das várias que me deste. Aí, sim, livre de peias, assumiste uma identidade com dimensões verdadeiramente cósmicas, milenares, condensando passado, presente e futuro.
- António, tu nunca precisaste de férias, pois não?
- Eu preciso sempre de esculpir! - E abanavas a cabeça negativamente, com um sorriso.
Esculpir foi e continua a ser o universo aberto de todo o teu tempo e de todo o teu espaço. Eis o homem, o artista, o cidadão António Júlio, escultor, colega de escola, amigo para sempre.